Wanderson Barreto, 34 anos, começou a estudar para concursos públicos em 2013, após conseguir seu diploma de administração e não ver perspectiva de carreira na iniciativa privada. Em 2014 já veio a primeira conquista: passou e tomou posse na Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB), pelas vagas de ampla concorrência – a seleção foi lançada três meses antes da sanção da Lei de Cotas.
No ano seguinte, já com a lei em vigor, Wanderson decidiu competir nas chances para negros no concurso aberto pelo INSS, a possibilidade de ter menor competição foi um dos motivos, e assim foi aceito - a banca, Cebraspe, exigiu que o candidato enviasse uma foto para a avaliação de seu fenótipo. Ele conseguiu se classificar, porém não foi convocado e o concurso acabou vencendo. No ano passado, ele então se inscreveu no concurso do TRF-1, como cotista ao cargo de técnico judiciário, com lotação na Bahia. A mesma banca, desta vez, exigiu que ele comparecesse em frente a uma comissão de três avaliadores para checar a veracidade se sua autodeclaração. No último 28 de março, porém, o candidato foi informado que havia sido excluído do concurso por sua aparência não se adequar à legislação de reserva de vagas a negros.
“Você acaba se questionando em que grupo se enquadra, e começa a ter um problema quanto a isso, porque sempre me considerei como pardo, tenho documentos oficiais que dizem isso. Já sofri preconceito pela minha cor e também por ser de origem humilde,” conta o candidato que nasceu em Ceilândia, Distrito Federal, mas que hoje mora em Barreiras, na Bahia. “Como consegui competir pelas cotas no INSS me senti seguro para, a partir daí, sempre me inscrever nessa condição. E como o concurso do TRF-1 também é organizado pela mesma banca, que assim me aceitou, não tive receio algum. Porém, nenhum dos membros da comissão que me avaliou da última vez concordou com minha autodeclaração.”
Como a não confirmação nas cotas raciais acarreta exclusão do concurso, Wanderson resolveu entrar na Justiça. “A lei é justa, mas falha nos mecanismos de controle. Como uma intervenção do Estado para reparar um problema histórico acho muito válida, mas precisa de aperfeiçoamento. Você tem o direito, mas fica a mercê de uma subjetividade extrema de avaliação de aparência. É como se te dessem com uma mão e tirassem com outra.”
O processo judicial
O caso foi julgado na 21ª Vara Federal Cível do DF. Em sua própria decisão, o juiz Marcelo Albernaz mencionou que Wanderson foi aceito como cotista pelo Cebraspe em seleção anterior e que o órgão em questão, o TRF-1, já julgou em caso para ingresso por cotas em vestibular que “se o aluno foi considerado negro em concurso vestibular pretérito para fins de concorrência pelo sistema de cotas raciais, faz jus a mesma conclusão no certame imediatamente seguinte, sob pena de irrazoabilidade ou existência de subjetivismo na avaliação de critério...”O magistrado, portanto, deferiu o pedido de tutela de urgência para suspender o ato administrativo que excluiu Wanderson do concurso do TRF-1 e determinou a inclusão de seu nome na lista de aprovados nas vagas destinadas a negros e nas vagas de ampla concorrência, respeitando a sua pontuação e ordem de classificação. A decisão foi tomada em 25 de abril e o juiz cedeu cinco dias para o órgão cumprir a decisão. Trata-se da primeira instância, portanto ainda cabe recurso.
O que dizem os especialistas
Segundo o advogado autor da ação, Max Kolbe, a Lei 12.990/14, que permite que candidatos negros que se autodeclararem pretos ou pardos concorram à reserva de 20% das vagas em concursos públicos, não define critérios para a análise da condição prestada pelos candidatos cotistas. “O candidato é da cor parda, tal qual dispõe a lei, seu nariz é tipicamente de uma pessoa negra e seu cabelo não é liso, característica comumente achada nas pessoas de cor branca. Então como pode a comissão entender que ele não apresenta características fenotípicas de uma pessoa negra? O fato é que não existem mecanismos objetivos de se aferir quem pode ser enquadrado na condição de cotista.”Mas, de acordo com o coordenador do curso de direito da Universidade Católica de Brasília (UCB), Célio Stigert, a nova norma do Ministério do Planejamento tirou a subjetividade da autodeclaração por si só com a inserção de critérios objetivos. “As cotas foram criadas pra diminuir a desigualdade de concorrência dos negros nos concursos, pois se entendeu que negros são menos favorecidos que os brancos socialmente. Acredito que as cotas devem ser mantidas, porque ainda existe no Brasil essa desigualdade, mas a tendência é mudar, já que cada vez mais negros estão acendendo. A ideia que hoje se discute muito no meio jurídico é a criação de cotas sociais. Ela é mais interessante considerando que a população brasileira é miscigenada e todos no Brasil podem se considerar negros por etnia. Por isso que a legislação para concursos mudou, estabelecendo critérios objetivos. Antes era necessária apenas a autodeclaração, hoje uma comissão avalia os candidatos objetivamente.”
Já segundo o doutorando de direito da Universidade de Brasília (UnB), Gian Marco Ferreira, a banca organizadora pode ser a mesma, mas cada comissão avaliadora é distinta. “Raça não é consenso, é uma construção social. Algumas pessoas são tidas como brancas em um determinado contexto e outras como negras. Por exemplo, uma pessoa que é vista como branca no Nordeste, pode não ser vista assim no Sul. No Brasil o fenótipo é o que motiva o racismo, mas mesmo a aparência é subjetiva. O que determina a avaliação do fenótipo é o olhar social, então não existe objetividade. O Planejamento tentou dar um grau objetivo nos concursos, mas essa é uma questão mais complexa do que criar normas, tem mais a ver com a percepção de quem compõe a banca e do próprio candidato.”
O outro lado
De acordo com o TRF-1, todas as questões referentes ao certame deverão ser encaminhadas ao Cebraspe. A banca organizadora, por sua vez, informou ao Concursos que os candidatos que concorrem às vagas reservadas aos pretos e pardos obedecem às regras previstas nos editais de abertura dos concursos públicos, que diferem entre si:“No caso do concurso do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), por exemplo, o edital previa a autodeclaração de que é preto ou pardo, conforme quesito utilizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e uma posterior etapa de verificação da condição declarada para concorrer às vagas reservadas aos candidatos negros por meio do envio de foto. Já o concurso para o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF 1ª Região) previa que a verificação ocorresse presencialmente.
Desta forma, este Centro ressalta que é possível que o mesmo candidato tenha resultados distintos, considerando que a forma da verificação foi diferente (foto e presencial) e que as bancas avaliadoras da etapa são múltiplas e formadas por pessoas diversas. Por isso, inclusive, em ambos os editais, conforme itens 5.10 (INSS) e 4.11 (TRF 1ª Região), a avaliação da banca específica quanto ao enquadramento, ou não, do candidato na condição de pessoa negra, tem validade apenas para o concurso em questão.”
O que diz a nova norma
Em abril deste ano, o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MP) publicou a portaria normativa nº 4, de 6 de abril de 2018, que determina a realização de procedimento de heteroidentificação nos concursos públicos, para complementar à autodeclaração dos candidatos negros que concorrem às cotas raciais. Trata-se da identificação da condição do fenótipo autodeclarado por uma comissão de avaliadores.O novo procedimento agora deverá estar previsto em todos os editais de abertura de concursos públicos da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, para fins de preenchimento das vagas reservadas, previstas na Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014.
De acordo com a portaria, a autodeclaração do candidato goza da presunção relativa de veracidade, que será confirmada mediante procedimento de heteroidentificação. Porém, em caso de dúvida razoável a respeito do fenótipo dos candidatos, o que vai prevalecer é a autodeclaração.
A comissão de heteroidentificação deverá ser constituída por cinco cidadãos de reputação ilibada e residentes no Brasil. Eles deverão atender ao critério da diversidade, com membros distribuídos por gênero, cor e, preferencialmente, naturalidade. Além disso, os nomes dos membros da comissão serão resguardados e eles devem preferencialmente ser experientes na temática da promoção da igualdade racial e do enfrentamento ao racismo. A comissão vai deliberar pela maioria do membros, sob forma de parecer motivado.
O edital poderá promover a heteroidentificação de forma presencial e filmada ou, excepcionalmente e por decisão motivada, de forma telepresencial, mediante uso de recursos de tecnologia de comunicação.
A portaria ainda determina que “serão consideradas as características fenotípicas do candidato ao tempo da realização do procedimento de heteroidentificação” e que não serão considerados quaisquer registros ou documentos pretéritos eventualmente apresentados, inclusive imagem e certidões referentes à confirmação em procedimentos de heteroidentificação realizados em concursos públicos federais, estaduais, distritais e municipais.
A portaria ainda estabelece que as deliberações da comissão terão validade apenas para o concurso público para o qual foi designada, não servindo para outras finalidades.
Por fim, segunda a norma, serão eliminados do concurso os candidatos cujas autodeclarações não forem confirmadas pelo procedimento.