De setembro de 2014 a abril de 2015, o governo federal ofereceu 4.177 vagas — 638 para negros. O montante equivale a 15,3% do total, abaixo dos 20% previstos. Para a Seppir, o impacto quantitativo ainda é baixo, mas é um início. O número se deve ao fato de a legislação só exigir a reserva de oportunidades para certames com número de postos superior a três. Segundo a Seppir, a quantidade de cotistas poderia aumentar caso universidades e institutos federais apresentassem mais vagas em seus concursos: das 1.143 oferecidas por essas instituições, 88 (ou 7,7%) foram destinadas às cotas — enquanto, nos demais editais, foram 550 para cotas de um total de 3.034 oportunidades.
O objetivo da lei é reduzir a discrepância na representação de negros no serviço público federal e corrigir desigualdades. Pedro Lucas de Moura Palotti, coordenador-geral de pesquisa da Escola Nacional de Administração Pública (Enap), ajudou a reunir dados sobre o 1,19 milhãode servidores públicos brasileiros e prevê que o processo se arrastará ao longo dos anos. “A mudança no perfil dos concursados — majoritariamente homens brancos — deve ser lenta, já que a reposição é gradual. Pode ser que não tenhamos impacto quantitativo, mas, com certeza, haverá efeitos qualitativos em todas as áreas”, prevê.
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A raiz da questão
Segundo Juliana Rissardi, sócia da consultoria de carreira e cultura organizacional People & Results, um dos grandes diferenciais olhados pelas companhias hoje em dia é a diversidade. “Perfis diferentes trazem mais produtividade, inovação e melhores resultados.” Ela argumenta, porém, que a diversidade não precisa ser alcançada por meio de cotas. “É uma medida paliativa que acaba abrindo outro buraco e transfere a responsabilidade para as empresas e para o setor público”, critica. “Dentro das organizações, a discriminação pode aumentar porque a pessoa será vista como aquela que passou graças à cota”, explica. Juliana defende o incentivo ao ingresso, mas não a cota. “É sempre positivo incentivar, não só negros, mas mulheres e gays também, mas sempre levando em conta que a qualidade da avaliação não pode cair.”
Max Kolbe, advogado, consultor jurídico e especialista em concursos públicos, avalia que, num país em que a população é altamente miscigenada, a lei de cotas para negros não faz sentido. “No Brasil, 99,9% da população é parda, já que o termo quer dizer miscigenado; pretos são a minoria (porque seriam pessoas de origem apenas africana). Se a finalidade é trazer acessibilidade, a medida não cumpre o objetivo. Uma pessoa de olhos claros pode ser miscigenada e, portanto, parda. Para concorrer, basta a autodeclaração, então, qualquer conduta da banca no sentido de restringir é ilegal.” Se, por um lado, Kolbe é contra a reserva de vagas para servidores, por outro lado, acredita que as cotas nas universidades públicas se justificam. “No âmbito acadêmico, estamos falando de acesso à educação. No serviço público, o que está em jogo é a qualidade do serviço prestado à população”, diz. Ele ainda define a regra como uma medida eleitoreira e critica o fato de ela acabar beneficiando pessoas de classes mais altas. “Os que terão condições de passar, mesmo com as cotas, serão os que investirem na preparação. Só o conteúdo da escola não é suficiente nem para concursos de nível médio. O Estado finge que está ajudando, mas não auxilia o negro de classe baixa, que realmente necessita.” De acordo com o advogado, para suprir essas mazelas, faz mais sentido uma cota social.
Desempenho em foco
Carlos Netto, diretor de Gestão de Pessoas do Banco do Brasil, se prepara para receber os primeiros aprovados por cotas em concursos da instituição. Na última seleção, 534 mil inscritos disputaram 2,5 mil vagas em 15 estados, das quais 500 eram destinadas exclusivamente a pardos e pretos. “Eles vão começar a ser convocados em julho, e estamos com uma expectativa muito positiva. O concurso foi muito concorrido. Então, quem foi selecionado é porque teve capacidade”, garante. No Banco do Brasil, 20% dos funcionários do quadro se declaram negros e, segundo Netto, a diversidade é bem-vinda. “A cada novo empregado, o banco se renova com diferentes características. Depois do ingresso, para ascender na instituição, o que conta é a performance”, revela.
É em mostrar bom rendimento que aposta o morador de Sobradinho Helder Silva Cruz, 26 anos. Ele sempre estudou em escolas públicas e cursou análise de sistemas na União Educacional de Brasília (Uneb). Com quatro anos de experiência na iniciativa privada, resolveu aproveitar a oportunidade aberta pela lei e foi aprovado em dois certames no ano passado: no Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e na Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social (Dataprev). “Assumi no ministério em fevereiro e estou esperando ser chamado pelo outro órgão. Todos deveriam ter acesso ao concurso público, mas existe uma herança história que prejudica o negro. Tudo que conseguimos até agora foi por luta, e não me sinto menor por ter passado por cotas”, conta. “A reserva de vagas é um início, mas a educação pública é que ainda tem que ser mudada. Facilitar o acesso à educação e ao trabalho é um caminho para reverter essa situação e permitir que os negros possam dar um futuro melhor para seus filhos. É uma porta para mostrar que somos iguais. E, no serviço público, o que importa é o desempenho. Se alguém sem capacidade passar, não consegue ficar por causa das avaliações”, afirma.
Para Helder, o grande problema está na aplicação da norma sem planejamento. “A sociedade não está preparada. As pessoas não falam diretamente, mas, de forma velada, sinto que há discriminação: pensam que você está ali só por causa das cotas.” Apesar de ser favorável à medida, Helder acredita que parâmetros sociais deveriam ser levados em conta. “Quem precisa são os negros de baixa renda. Não adianta passar o que é rico. E os brancos pobres ficam como?”, indaga.
Três perguntas para Ronaldo Barros, secretário de políticas afirmativas da Seppir
- Como você avalia o primeiro ano de aplicação da Lei nº 12.990/2014?
Em termos percentuais, foi positivo porque está próximo dos 20% estabelecidos, mas cabe destacar que a lei reserva, no mínimo, 20%. As pessoas acabam interpretando o mínimo como teto. Do ponto de vista quantitativo, o que conseguimos ainda é pequeno. São 638 vagas, e a previsão era de que chegássemos a quase 58 mil ao longo de 10 anos da lei.
- Como a lei é monitorada?
Com o objetivo de acompanhar o cumprimento, o governo federal vai lançar uma portaria interministerial (composta por Seppir, Ministério do Planejamento, Casa Civil, Secretaria-Geral da Presidência da República e Advocacia-Geral da União) ainda este mês que criará a comissão de acompanhamento (com representantes do governo e da sociedade civil). Assim, vamos aperfeiçoar os mecanismos de avaliação para que a lei seja cumprida integralmente, fazer campanhas para que o piso não se torne teto e incentivar que os 20% sejam ampliados.
- Esse tipo de política é suficiente para a inclusão?
Sozinha, não. O racismo é estrutural e sistêmico, por isso é importante trabalhá-lo desde a primeira infância até o ciclo final da vida. Também precisamos ter políticas de permanência dos estudantes negros nos ensinos fundamental, médio e superior. O preconceito não está apenas na cor da pele, está nas partes mais estruturantes e deixou sequelas profundas na sociedade brasileira. Nenhum país sério pode desconsiderar metade de sua força de trabalho. Também é importante que existam medidas assim na iniciativa privada: deveria haver política de inclusão em programas de trainee e de formação de executivos.